Avançar para o conteúdo principal

Adeus...



 Adeus  

Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.

Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já se não passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus.

Eugénio de Andrade, in “Poesia e Prosa”

Comentários

Mensagens populares deste blogue

A menina que queria ser maça

Quando perguntaram a Joaninha o que é que ela queria ser quando fosse grande (há sempre um dia em que um adulto nos faz essa pergunta), ela não hesitou: - Quando for grande quero ser maçã! Disse aquilo com tanta convicção que a mãe se assustou: - Maçã? A maior parte das crianças quer ser:  a)  astronauta  b)  médica/o  c) corredor de automóveis  d)  futebolista  e)  cantor/a  f)  presidente. Há algumas respostas mais originais: «Quero ser solteiro», confessou o filho de uma amiga minha. Conheço uma menininha que foi ainda mais ambiciosa: - Quando for grande quero ser feliz. Mas maçã? Joaninha, meu amor, maçã porquê? A pequena encolheu os ombos: «são tão lindas». Passaram-se os anos e a mãe pensou que ela se tinha esquecido daquilo. Mas não. No dia em que entrou para a escola a professora fez a todos os meninos a mesma pergunta: - Ora vamos lá a saber o que é que vocês querem ser quando forem grandes... Astronauta. Piloto de Fórmula 1. Cantora. Futebolista. Barbie (

Poesia de José Fanha

  Adorei!!         Poesia de José Fanha Editor: Lápis de Memórias   Publicado em 2012 este livro é uma coletânea de poemas escritos por José Fanha ao longo de mais de 40 anos. Considerado um dos maiores nomes da poesia portuguesa contemporânea, José Fanha é conhecido como poeta de intervenção cívica e pública, símbolo da luta pela liberdade e combate à exclusão. Nas suas mais variedades manifestações Fanha destaca-se pela forma única como trata todos de forma idêntica, sejam crianças ou adultos e defende que o “ local mais nobre para partilhar a palavra e fazer desaguar a poesia ” é a praça pública. Um dos meus favoritos ASAS Nós nascemos para ter asas meus amigos. Não se esqueçam de escrever por dentro do peito: nós nascemos para ter asas. No entanto, em épocas remotas vieram com dedos pesados de ferrugem para gastar as nossas asas assim como se gastam tostões. Cortaram-nos as asas como se fôssemos apenas operários obedientes, estudantes atencioso

A Princesa do Dia e o Príncipe da Noite

As delicadas ilustrações de Lisbeth Renardy acompanham esta bonita história da escritora francesa Adeline Yzac que, com ritmo e magia, nos fala de amor, dicotomias, ciclos, solidão e imaginação… e de como as histórias trazem alegria ao mundo. Este livro dirigido ao público infantil conta a história do reino do Dia, onde o Sol nunca se punha, e do reino da Noite, onde o Sol não nascia nunca. O amor, porém, ultrapassa todas as barreiras temporais e espaciais, e eis que a Princesa do Dia e o Príncipe da Noite se apaixonam um pelo outro. Para poderem viver felizes para sempre, como nas histórias, é preciso encontrar uma solução… da noite para o dia. Um livro (editado pela Livros Horizonte) que integra o Plano Nacional de Leitura. Autoria  Lisbeth Renardy   Livros Horizonte