Conceição Dinis Tomé, 44 anos, docente há 20. Atualmente, é professora bibliotecária no Agrupamento de Escolas Viseu Sul, doutorada em Estudos Portugueses e investigadora do Centro de Estudos das Migrações e Relações Interculturais (CEMRI) da Universidade Aberta. Autora de contos no domínio da literatura infantojuvenil (A Lua e o Pirilampo, Histórias do Rapaz Que Se Tornou Fazedor de Estrelas, Manhã de Natal), venceu o Prémio Literário Maria Rosa Colaço / Literatura Juvenil, de 2012, atribuído pela Câmara Municipal de Almada, com o livro O Caderno do Avô Heinrich.
As minhas memórias mais antigas estão ligadas à escola primária da aldeia minhota onde nasci. Sou filha de uma assistente operacional, como agora se chama às senhoras que, naquele tempo, cuidavam da escola, distribuíam pelos alunos copos de leite quente e ainda brincavam com as crianças no recreio, e, por pouco, não nasci naquele edifício caiado de branco, rodeado por frondosos carvalhos que a professora primária, a Dona Celestina, havia plantado, com amor.
A Dona Celestina, mulher doce e exímia contadora de histórias, que já ensinara a minha mãe e os meus irmãos mais velhos a ler, não se importava que eu me sentasse numa das carteiras vagas e que assistisse às aulas, ainda antes de a lei permitir que eu as frequentasse. Foi ela quem me ensinou a ler e a escrever, foi com ela que descobri os livros e a magia que as palavras carregam. Foi ela quem me transmitiu a alegria de partilhar o que aprendemos, e, sobretudo, o prazer de continuar, todos os dias, a aprender.
A minha primeira professora ensinava com grande rigor e exigência e com a mesma dose de ternura. Os seus olhos pequeninos, parcialmente escondidos por uns óculos de lentes muito grossas, brilhavam quando liam as nossas redações ou acertávamos o nome dos rios ou das serras. Não me lembro dela a não ser a sorrir, meiga e serena. Uma mulher feliz, que se dedicou totalmente à sua profissão, o maior projeto da sua vida, que se orgulhava de cada progresso feito pelos seus alunos e que os respeitava profundamente. Como diz o poema de Sebastião da Gama, quando se zangava, porque não correspondíamos às suas expectativas, a Dona Celestina "ralhava assim como quem beija".
Quando se reformou, estava eu na terceira classe, chamou-me a sua casa e ofereceu-me a secretária onde, ao longo de toda a sua vida, preparara as aulas e corrigira os trabalhos dos alunos. Eu soube nessa altura que eu própria me tornaria professora. Porque eu queria ser como a Dona Celestina.
No liceu, decidi que seria professora de Português de alunos mais crescidos e, por isso, em 1988, ingressei na Universidade do Minho para frequentar a licenciatura em ensino de Português-Francês. Foram anos de grande aprendizagem, com excelentes professores: o professor Vítor Aguiar e Silva, o professor Américo Lindeza Diogo, entre tantos outros. Nos primeiros meses do ano de estágio, confrontada com a indisciplina de alguns alunos da turma de Português do 9.º ano, cheguei a pensar em desistir. Aprendi, com o meu orientador de Português, o professor Vilaça, um mestre de coração grande, a criar com cada aluno uma relação baseada no respeito, na exigência e no afeto.
Quando concluí a licenciatura, trabalhei um ano no ensino recorrente, à noite, com trabalhadores-estudantes. A aluna mais velha tinha quase a idade da minha avó e tratava-me carinhosamente por "menina professora". Foi um ano muito importante. As pessoas que eu tinha à minha frente manifestavam muita vontade de aprender, mesmo carregando o cansaço de um dia de trabalho. Foi com muita humildade que trabalhei com alguns daqueles alunos a quem a vida havia já ensinado tanto.
Trabalho há quase duas décadas em escolas do concelho de Viseu, a maioria desses anos na Escola Básica D. Luís de Loureiro, em Silgueiros, a lecionar Português e Francês a alunos do 3.º ciclo. Não é fácil ser-se professora. Nada fácil. É, no entanto, muito gratificante, ver os alunos que têm vontade de aprender a descobrir os textos literários, a escreverem cada vez melhor, a partilharem as suas leituras, a melhorarem as suas capacidades, a conseguirem comunicar numa língua que não é a sua.Sou, desde 2003, professora bibliotecária, ainda que, nessa altura, não se chamasse assim à responsável pela biblioteca escolar. A minha vida profissional ganhou um novo e mais completo sentido. A partir desse momento, tenho vindo a trabalhar também com alunos e professores do pré-escolar, do primeiro, segundo e terceiro ciclos.
As bibliotecas são a minha segunda casa. Desde o dia em que, aos doze anos, após ter feito o segundo ciclo através da Telescola, passei a frequentar a escola secundária em Vila Nova de Famalicão e descobri, nos anos seguintes, para além da biblioteca do liceu, a Biblioteca-Fixa da Gulbenkian e a Biblioteca da Fundação Cupertino de Miranda, onde passei tantas tardes da minha juventude.
Já o disse noutro momento e gostava de o repetir aqui: acredito no poder das palavras, acredito na força dos livros, acredito profundamente na literatura. Em Os livros que devoraram o meu pai, de Afonso Cruz, pode ler-se que nós não somos feitos de ADN, mas de histórias. Eu também acredito que somos feitos de histórias e que, sem os livros, o mundo seria um infinito deserto. Trabalho diariamente na promoção da leitura e creio, religiosamente, no seu poder e na sua importância para o desenvolvimento das crianças e dos jovens. Sei que a formação de leitores competentes, de leitores literários, é uma estratégia "subversiva" ao serviço da liberdade e da realização integral do ser humano. São dias de festa aqueles em que, carregada de baús, me dirijo aos jardins-de-infância e às escolas do primeiro ciclo sem biblioteca do Agrupamento de Escolas Viseu Sul, onde trabalho, para contar histórias e distribuir os livros para leitura domiciliária. Quando chego, os abraços e os sorrisos são muitos: "Olha a professora das histórias!", gritam as crianças.
Um dia, Eugénio de Andrade disse que "uma árvore ou um poema podem ainda mudar o mundo". Eu acredito que as histórias que conto, os livros que sugiro aos alunos do segundo e terceiro ciclos, os baús de livros que distribuo pelas crianças mais pequenas hão-de fazer alguma diferença, ainda que pequenina. Como Luiz Ruffato, também eu me alimento de utopias. Concordo em absoluto com este escritor brasileiro quando afirma, no discurso que fez na abertura da Feira do Livro de Frankfurt, em outubro passado, que "se a leitura de um livro pode alterar o rumo da vida de uma pessoa, e sendo a sociedade feita de pessoas, então a literatura pode mudar a sociedade".
Apesar do desrespeito dos últimos tempos pela profissão de professor e dos dias de desânimo, apesar da crescente burocracia que não deixa tempo para o que é verdadeiramente essencial na vida docente, continuo ainda a acreditar no meu trabalho e sei que sou privilegiada porque me levanto todos os dias para fazer o que gosto, numa escola perto de casa, sem precisar de me afastar da minha família, como acontece com tantos colegas.
Termino este texto sentada à secretária que me acompanha desde a infância. Sei que tenho ainda muito para aprender e fico feliz por isso. Após ter concluído, em 2008, o mestrado em Gestão da Informação e Bibliotecas Escolares, inscrevi-me no doutoramento em Estudos Portugueses e sou, atualmente, investigadora do Centro de Estudos das Migrações e Relações Interculturais, da Universidade Aberta. Porque quero continuar a aprender. Porque continuo a querer ser como a Dona Celestina.
Fonte:http://visao.sapo.pt/a-importancia-das-historias=f778842#ixzz3ZXjnfM3Y
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