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Preciso de ti


Antes de começar... Acabei de suplicar dez minutos para este bilhete... Terrivelmente, terrivelmente vivo, dorido, e sentindo absolutamente que preciso de ti. Permiti o silêncio deliberadamente, sentindo uma grande necessidade de me retirar em mim mesmo, para escrever, e mil coisas prevalecendo. 

Mudei para outra máquina, assustadora; a máquina francesa... maldita, e eu bêbedo com o desejo de te escrever. Ouve, ligo-te de manhã: esta noite ou escrevo ou rebento, mas tenho de te ver. Vejo-te brilhante e maravilhosa e ao mesmo tempo tenho estado a escrever à June e todo dividido mas tu compreenderás — tens de compreender. Vou atirar-me a uma pausa e faço uma chamada. Anais, apoia-me. Não deixes que os silêncios te preocupem: estás toda à minha volta como uma chama clara. Nada a não ser dois pontos, não encontro o ponto nem os apóstrofos. Nenhuma cópia disto também: óptimo: bêbedo... bêbedo de vida... Anais, por Cristo: se tu soubesses o que estou a sentir agora. 
Isto foi [escrito] ao chegar [ao escritório]. Agora 3h20 da manhã no quarto do Fred... Toda a força desaparecida e destruída por imagens. O Fred está na cama com a Gaby do chambre 48. Está deitada como um cadáver. Tenho pena dela. Digo-lhe para dormir. 

Acabei de ler as páginas do Fred sobre mim... São boas... Acho que também vais dizer isso. (Tu sabes que eu gostaria de ter todos os seus manuscritos de volta... São para mim, e ele ficaria sentido se eu não ficasse com eles.) Queria telefonar-te esta noite, mas, quando estava livre para sair, já passava um pouco das dez e receei que estivesses deitada. Pareceu estranho não ver nenhuma carta tua, não ouvir a tua voz. Agora, sábado e domingo terei de passar sem sinal de ti. Ontem levei todo o dia a negociar com a polícia e com a empresa imobiliária. Ainda nada é certo acerca da minha autorização para trabalhar. Hoje recusei teimosamente que algo interferisse com a escrita. Pensei que conseguiria continuar depois do trabalho, mas não, estava bastante exausto. 

Não gosto de te escrever bilhetes rabiscados como este... Quero espaço e tempo para ti... Mas agora é Paris e tudo está acondicionado como um «accordéon». Temos de nos acotovelar até para ter tempo. 
Anais, agora estou a beber vinho diluído... Está quase no fim. Sobrepujante outra vez. Esta mesa é tão rica... Tudo o que se possa imaginar em cima dela... Máquina de escrever, comida, aguarelas, cinto e camisola da Gaby, manuscritos do Fred, ferro de engomar, medalhão da Rona, candeeiro a álcool, Goethe, dossiês, agenda, cachimbos, etc. Miudezas. Tenho uma sanduíche na mão. A Gaby está morta para o mundo. Estou sentado em cima do seu casaco de peles... O Fred diz que não faz mal. 


Quero familiarizar-me mais contigo. Amo-te... Amei-te quando vieste e te sentaste na cama... Toda essa segunda tarde foi como uma névoa quente... E ouço outra vez o modo como dizes o meu nome... Com esse teu sotaque estranho. 
Despertas em mim uma tal mistura de sentimentos! Não sei como te abordar. Vem só ter comigo... Aproxima-te mais e mais de mim... Vai ser maravilhoso, prometo-te. Gosto tanto da tua franqueza... Quase uma humildade. Nunca poderia ferir isso. 

Pensei esta noite que era com uma mulher como tu que eu devia ter casado. Ou será que o amor, no princípio, inspira sempre estes pensamentos? Não tenho nenhum receio que queiras ferir-me. Vejo que tens uma força, também... De uma ordem diferente, mais intangível. Não, tu não vais quebrar. Eu disse uma série de parvoíces... Sobre a tua fragilidade. Sempre fiquei um pouco embaraçado. Mas menos da última vez. Vai tudo desaparecer. Tens um tão delicioso sentido de humor... Adoro isso em ti. Quero sempre ver-te a rir. O riso pertence-te. Tenho pensado em sítios onde devíamos ir juntos... Sítios pequenos, obscuros, aqui e ali em Paris. Só para dizer... Aqui vim com a Anais... Aqui comemos, ou dançámos, ou embebedámo-nos juntos. Ah, ver-te realmente bêbeda uma vez... Isso seria um gozo! Tenho quase receio de sugeri-lo... Mas, Anais, quando penso como te encostas a mim, como abres as tuas pernas com tanta vontade e quão húmida estás, Deus, enlouquece-me pensar como serias quando tudo está a rodopiar. Ontem, quando fui à polícia, à espera na fila aqui e ali, pensei em ti, como me encostavas as pernas em pé, no quarto a rodar, a cair em ti na escuridão e nada sabendo. E estremeci e resmunguei com prazer. Queria correr e telefonar-te... E depois foi a minha vez de marchar para o atendimento. 


Estou a pensar que, se o fim-de-semana passar sem eu te ver, vai ser insuportável. Se esta carta te chegar no sábado... Se eu conseguir acordar a tempo... Ou te puder telefonar... Diz-me se podemos encontrar-nos, e se for preciso eu posso ir a Louveciennes no domingo... Qualquer coisa, mas tenho de te ver, de estar perto de ti. Mas age, Anais... Não tenhas medo de me tratar friamente. Será suficiente estar perto de ti, olhar para ti com admiração. Não arrisques demasiado. Deixa-me só estar aí... Se possível, organiza tudo de modo a que possamos ir a Paris todos juntos. Oh, não quero saber, não organizes nada. Não faças nada que te magoe, ou que te comprometa. Amo-te, e é tudo. 

Henry Miller, in "Carta de Henry Miller a Anais Nin, 1932"

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