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Recordando Ary dos Santos



Oriundo de uma familia da alta burguesia, José Carlos Ary dos Santos, conhecido no meio social e literário por Ary dos Santos, nasceu em Lisboa a 7 de Dezembro de 1937.
Aos quatorze anos, a sua familia publica-lhe alguns poemas, considerados maus pelo poeta. No entanto, Ary dos Santos revelaria verdadeiramente as suas qualidades poéticas em 1954, com dezasseis anos de idade. É nessa altura que vê os seus poemas serem seleccionados para a Antologia do Prémio Almeida Garrett.
Foi nessa altura que Ary dos Santos abandonou a casa da família, exercendo as mais variadas actividades para seu sustento económico, actividades essas que passariam pela venda de máquinas para pastilhas até à publicidade. Contudo, paralelamente, o poeta não cessa jamais de escrever e em 1963 dar-se -ia a sua estreia efectiva com a publicação do livro de poemas " A Liturgia do Sangue".
Ary dos Santos morreu a 18 de Janeiro de 1984.
Com ele, os festivais RTP da canção atingiram alguma dignidade. Poeta empenhado nas lutas sociais do seu tempo, foi autor (com Nuno Nazareth Fernandes, Fernando Tordo, Paulo de Carvalho, José Luís Tinoco e outros) de algumas belas canções. "Menina", por Tonicha, "Desfolhada", por Simone de Oliveira e sobretudo a "Tourada", com Fernando Tordo, foram algumas das suas canções de maior sucesso nos festivais anteriores ao 25 de Abril.
Com algum escândalo à mistura: primeiro, no ano da "Desfolhada", onde Ary teve a "ousadia" de escrever um verso que fez corar as mentes puritanas da época ("quem faz um filho fá-lo por gosto"); depois com "Tourada", que esteve mesmo para ser impedida de representar Portugal no Eurofestival.
Após a Revolução, Ary continuou a escrever canções: "Portugal Ressuscitado", escrita em cima dos acontecimentos, foi a primeira canção sobre o 25 de Abril, e muitas se lhe seguiram, algumas de cunho militante e circunstancial (como o "Fado de Alcoentre"), outras capazes de resistir à passagem do tempo, como "Estrela da tarde" ou os "Putos", ambas cantadas por Carlos do Carmo.
Ary dos Santos foi um dos mais talentosos poetas da sua geração, conhecido pela sua linguagem irreverente e ágil e que contribuiu de grosso modo para a viragem de música popular portuguesa. Como ele próprio dizia, a poesia era a maneira que ele tinha de falar com o povo porque ser poeta é escolher as palavras que o povo merece.
«…Serei tudo o que disserem 
 por temor ou negação: 
Demagogo mau profeta 
 Falso médico ladrão 
 Prostituta proxeneta 
Espoleta televisão. 
Serei tudo o que disserem: 
Poeta castrado não!» 
 
Quem não se lembra?
Um hino a mulher
 
Desfolhada 
Ary Dos Santos
Corpo de linho Lábios de mosto Meu corpo lindo Meu fogo posto. Eira de milho Luar de agosto Quem faz um filho Fá-lo por gosto. É milho-rei Milho vermelho Cravo de carne Bago de amor Filho de um rei Que sendo velho Volta a nascer Quando há calor.
Minha palavra dita à luz do sol nascente Meu madrigal de madrugada Amor amor amor amor amor presente Em cada espiga desfolhada.
Minha raiz de pinho verde Meu céu azul tocando a serra Oh minha água e minha sede Oh mar ao sul da minha terra.
É trigo loiro É além tejo O meu país Neste momento O sol o queima O vento o beija Seara louca em movimento.
Minha palavra dita à luz do sol nascente Meu madrigal de madrugada Amor amor amor amor amor presente Em cada espiga desfolhada.
Olhos de amêndoa Cisterna escura Onde se alpendra A desventura. Moira escondida Moira encantada Lenda perdida Lenda encontrada. Oh minha terra Minha aventura Casca de noz Desamparada. Oh minha terra Minha lonjura Por mim perdida Por mim achada.
 
 


Um Homem Na Cidade

Ary Dos Santos

Agarro a madrugada
como se fosse uma criança,
uma roseira entrelaçada,
uma videira de esperança.
Tal qual o corpo da cidade
que manhã cedo ensaia a dança
de quem, por força da vontade,
de trabalhar nunca se cansa.
Vou pela rua desta lua
que no meu Tejo acendo cedo,
vou por Lisboa, maré nua
que desagua no Rossio.
Eu sou o homem da cidade
que manhã cedo acorda e canta,
e, por amar a liberdade,
com a cidade se levanta.
Vou pela estrada deslumbrada
da lua cheia de Lisboa
até que a lua apaixonada
cresce na vela da canoa.
Sou a gaivota que derrota
tudo o mau tempo no mar alto.
Eu sou o homem que transporta
a maré povo em sobressalto.
E quando agarro a madrugada,
colho a manhã como uma flor
à beira mágoa desfolhada,
um malmequer azul na cor,
o malmequer da liberdade
que bem me quer como ninguém,
o malmequer desta cidade
que me quer bem, que me quer bem.
Nas minhas mãos a madrugada
abriu a flor de Abril também,
a flor sem medo perfumada
com o aroma que o mar tem,
flor de Lisboa bem amada
que mal me quis, que me quer bem.



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