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Tudo É e não É.




Maria Teresa Horta sobre "Tudo É e não É"
Manuel Alegre - Da matéria dos sonhos
18-05-2013 Maria Teresa Horta, JL
"Porque se este romance é escrito com a matéria poética, de quem tão bem tem sabido cantar Portugal, com um olhar de maravilhamento, grandiosidade e asa, em contraponto gritante com a triste realidade dos tempos de chumbo que atravessamos, ele é, também, no seu cerne mais absoluto, inequivocamente, político e revolucionário. (...) O romance de um homem que tem a capacidade e a sabedoria de nos ir contando as suas inquietações, através de um repassar de memórias e reminiscências, que o sonhar desfia e transfigura."
Texto integral
Os poetas são da condição do sonho, da condição do voo, através das palavras, dos versos, das metáforas, num eterno retornar de Fénix renascida. De paixão em paixão, como sempre exige a poesia. Os poetas são da condição dos anjos, com “bocas exaustas” e alma sem costura, diria Rilke.
Manuel Alegre é um poeta da condição da liberdade; da descosura dos tempos de violência da ditadura; do derrube de fronteiras – barreiras impostas pelo medo; no desconcerto de regras, na frontal recusa da censura e suas proibições ameaçadoras. O que inevitavelmente leva a inúmeras e invisíveis censuras interiores, que sempre colocam grilhetas nos poemas, e mordaças na escrita que, no desejo de se manter intacta, tal como Alice no livro de Lewis Carroll, passa para o outro lado do espelho, na tentativa de resguardar um imaginário que se quer liberto, a reinventar-se a si mesmo, a partir das fundações da linguagem.
Pelo lado perverso do seu forro, ou pela tessitura mesmo das palavras tomadas sem qualquer avesso. Recriando-se no lugar fugidio, mas libertário, do sonho sonhado.
Marina Tsvétaieva escreveu: “O poeta sonha e o poema desperta.” Por seu lado, Shakespeare garantiu: “Somos feitos da mesma matéria de que são feitos os sonhos”. Foi exactamente com a matéria dos sonhos que Manuel Alegre escreveu o seu novo livro, emocionante romance de aventuras fantásticas, Tudo É e não É.
Título que deixa transparecer, antes mesmo de o abrirmos, quanto o seu corpo narrativo poderá ser equívoco e imprevisto; ficção ambivalente e contraditória, com a qual os leitores se irão deparar ao longo de uma leitura sobressaltada e imprevisível. Pois Manuel Alegre, num golpe de asa, de mágica literária, desde as suas primeiras linhas, toma conta dos leitores desprevenidos , “arrastando-os” consigo, a levá-los por, “dunas, declives, colinas, abismos. O rugido do mar ao longe” – como conta António Valadares, o narrador.
Caminhos de tumulto, atalhos e quedas de água, no desnorte da vertigem, em ensandecidas, inúmeras e empolgantes viagens e feitos que, se de imediato se esgarçam, se rompem ou abruptamente se interrompem, também logo se refazem, ou até mesmo se transmutam, tudo isto diante dos olhos de quem se debruça sobre as páginas, sem fôlego mas empolgado.
Ou então, talvez se, pormenor em pormenor, seguidos de contraditórios volte-faces, o tempo não avance, ou tão depressa avance como quem recua, ou ainda avance de rompante, desse modo simulando esgueirar-se, para logo regressar intacto em si mesmo, perante os leitores perplexos e estupefactos, que temem extraviar-se, embora ansiando por continuarem a leitura, da qual, entretanto, ficaram dependentes, viciados.
Estonteados, mas ávidos. “Lembro e não me lembro, vejo e não vejo, (…) e eu lá dentro, a girar. Não sei se para cima se para baixo. Havia um buraco. Ou talvez fosse água, um poço e eu” – ia continuando Valadares.
A verdade é que, a partir de determinada altura, já não se está bem certo de nada, nem mesmo se não somos nós que afinal sonhamos, em vez do protagonista, criadores de sonhos e narrações, onde por gosto nos perdemos. Jamais sabendo aqueles que lêem, sempre que viram uma página, se o sonho entretanto não se mudara, transfigurando-se, de ficção em ficção, de quotidiano em quotidiano.
Numa permanente oscilação, entre a queda no abismo jubiloso da literatura, e a fundura intranquila e perigosa da realidade. No entanto, magicamente reféns da leitura de Tudo É e não É, em demanda literária, prosseguimos por entre equívocos, dubiedades e alegorias, em aventuras delirantes a multiplicarem-se com rapidez, ao longo de cada noite que passa, numa infinita galeria de marcantes figuras que fazem parte, por motivos diversos, dos nossos imaginários, Ava Gardner, Paul Newman e Errol Flynn, ou Lenine, Marx, Trotsky e Mitterrand, igualmente Kafka, Bocage, René Char, ou ainda Walter Benjamin, Erza Pound e Walt Whitman… E os heróis? E os mitos? Também esses, claro, como poderia Manuel Alegre não os referir, neste seu romance de encantatórios regressos às nossas referências e raízes, tais como Penélope e Ulisses…
Embora, também, num repente, por “capricho de um sonho”, possamos ser empurrados de Ítaca, ou de Tróia, “por sobre os rios, talvez os de Babilónia”, para o terreno perigoso de um filme sobre a Gestapo, e de imediato estarmos a fazer amizade com Felipe, o guerrilheiro caído na guerrilha de Douglas Bravo…
E como nestes sonhos se vêem coisas estranhas, e neles “tanto faz morar num livro como nas montanhas da Venezuela”, é fácil conviver-se tanto com pistoleiros, com fadistas, com espadachins e flibusteiros, ou mesmo encontrar a minha pentavó, a poetisa Leonor de Almeida, Marquesa de Alorna, sermos abordados pelo Mão Invisível ou então, depararmos com o patíbulo onde a Leonor Marquesa de Távora, minha sétima avó, está prestes a ser degolada…
Ou entretanto já não, pois como os sonhos são feitos de equívocos, afinal sou eu Maria Teresa Horta, que me encontro nas mãos do verdugo, das quais, António Valadares acabou, assustadoramente, por não me libertar…
Romance veloz, ágil, voraz e sequioso, Tudo É e não É possui o poder encantatório de desencadear em quem nele mergulha, a compulsiva vontade de desenredar os próprios enigmas interiores, numa busca perturbadora e perigosa, deste modo prosseguindo, no galgar de montanhas e escarpas abruptas, em direcção ao conhecimento, atento a cada pormenor vertiginoso, a cada animal que se levante debaixo dos seus passos desacautelados, distraído que prossegue na leitura cada vez mais rápida, e sem conseguir parar de ler.
Pois Manuel Alegre, tal como fizera Xerazade, vai enredando os leitores, capturando-os na malha apertada, das suas mil e uma histórias, que, ao misturarem-se se entretecem umas às outras, na construção, quer dos sonhos, quer da própria trama narrativa, num cerzir onírico de anseios e esperanças, que jamais parecerão vãs.
Ou não fosse Tudo É e não É, uma espécie de repositório metafórico, do universo literário de Manuel Alegre. O passar em revista da sua entrega à causa da Liberdade, por entre desafios, esperanças e madrugadas libertadoras. Porque se este romance é escrito com a matéria poética, de quem tão bem tem sabido cantar Portugal, com um olhar de maravilhamento, grandiosidade e asa, em contraponto gritante com a triste realidade dos tempos de chumbo que atravessamos, ele é, também, no seu cerne mais absoluto, inequivocamente, político e revolucionário. Como ele próprio afirma, “um livro simbólico de uma geração que sonhou com utopias”. O romance de um homem que tem a capacidade e a sabedoria de nos ir contando as suas inquietações, através de um repassar de memórias e reminiscências, que o sonhar desfia e transfigura.
Sonho após sonho, noite após noite.





Fonte:http://www.manuelalegre.com/331000/1/002940,052013/index.htm

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